A violência contra a mulher é tema que vem ganhando cada vez mais espaço na mídia e na mente da sociedade civil e do Estado, tal a comoção que a publicidade deste fenômeno provoca. A cada ano, crescem os números de casos de agressão, alguns deles divulgados nos noticiários, outros anônimos (muitas vítimas temem pela própria vida e por isto não denunciam os parceiros violentos). Paixão (2018) destaca o poderio da violência, uma vez que não está limitada ao espaço público; invade o âmbito particular, local este que deveria ser sinônimo de acolhimento, segurança ou proteção de qualquer ameaça ou perigo. Como dito anteriormente, os agressores são, em geral, pessoas próximas de sua convivência ou intimidade, como parceiros íntimos ou familiares.
De fato, é impossível conceber a violência como limitada ao âmbito particular; ela extrapola para o espaço público, pois se apresenta “como um fenômeno estrutural, de responsabilidade da sociedade como um todo.” (SENADO FEDERAL, 2017).
Neste bojo, destaco a produção acadêmica do sociólogo norueguês Johan Galtung, conhecida mundialmente por seus estudos no sentido de compreender os conceitos de paz e a violência. Ele classifica a violência em três tipos: direta, estrutural e cultural. (GALTUNG apud PALHARES &SCHWARTZ, 2015).
A violência direta é aquela visível, prontamente identificável, e que envolve pelo menos duas pessoas: o emissor, que é agente da agressão propriamente dita, e a vítima, pessoa onde recai o ato prejudicial, seja físico ou psicológico. A estrutural, como o próprio nome diz, opera sobre uma estrutura social, geralmente desigual em termos de recursos e serviços, e portanto, de poder. O opressor e detentor de poder age então valendo-se desta vantagem sobre o oprimido, obviamente destituído de autonomia diante de sua dura realidade. Por fim, a violência cultural vem endossar as demais citadas anteriormente, uma vez que as sustenta e valida , sendo capaz de “influenciar, direcionar e moldar a construção da realidade social, seja em âmbito pessoal ou coletivo.“ (PALHARES &SCHWARTZ, 2015).
A violência contra a mulher atende a estas três características específicas.
A Convenção de Belém do Pará, promulgada em 1o. de agosto de 1996, traz em seu texto reconhecimento sobre a gravidade do tema relacionado à violência sofrida pela mulher, constituindo “ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens”. (BRASIL, 1996). Tal desequilíbrio se dá, segundo afirmam Saffioti e Almeida (1995), levando-se em consideração a instância cultural construtora do gênero segundo práticas sociais baseadas em leis rígidas cuja formulação tem como inspiração os fatores biológicos. Fato este que determinará de forma massiva e inconsciente as subjetividades relacionadas ao que é feminino e masculino e as identidades de homem e mulher, colocando os indivíduos uns em relação aos outros em termos de posicionamento em um sistema de representação na estrutura de uma determinada sociedade. O gênero, portanto, é ao mesmo tempo o produto destituidor de singularização e o processo da representação social. Neste decurso, atuam como coadjuvantes o peso de pertencer a certa etnia e classe social.
A delimitação dos papéis do homem e da mulher baseada em diferenças biológicas têm peso nas relações de poder assim instituídas: o feminino representa a docilidade, a submissão, a passividade e invisibilidade enquanto o masculino deve representar a ação, força, agressividade, dominação. Homens seriam seres de primeira classe, enquanto as mulheres, seres inferiores. É de senso comum apontar o machismo como uma polarização entre os gêneros, sobrepujando o masculino sobre o feminino. A questão vai muito mais além: o machismo é um manual de crenças e condutas onde critérios excludentes não são apenas lançados sobre as mulheres, mas também contra os próprios homens. Ideias estas que pautarão todos os tipos de relacionamento durante toda a vida, estabelecendo as concepções de ser mulher e ser homem. Apesar de serem muitos os avanços no sentido de as mulheres conquistarem cada vez mais o poder pelas próprias escolhas, o machismo segue resistindo e entranhado nas ações cotidianas, no imaginário dos homens e das mulheres (CASTAÑEDA, 2006).
O modus operandi do machismo é desempoderador: devido às expectativas rígidas de comportamento frente a sociedade estabelecidas para os gêneros, homens e mulheres além de viverem sob intensa e constante competição, vigiam um ao outro patrulhando cada passo dado questionando a masculidade/ feminilidade, fomentando deste modo o demérito e a descrença em relação ao outro, numa atitude de castração psicológica mútua. Sem direito a exercer a própria liberdade de ser-e-estar no mundo. Todos são vítimas.
Os casos de violência, como aponta Cardoso (2008), têm a ver principalmente com a destituição deste lugar de dominador/dominado a partir da assunção da autonomia feminina e uma consequente perda de controle masculino, o que vai culminar em uma imposição violenta da recuperação deste status autoritário, seja em que âmbito as relações entre homem e mulher se estabelecem. O foco deste trabalho aqui é enfatizar a violência na relação íntima de casal. Em geral, as manifestações de violência contra a mulher se apresentam da seguinte forma: o agressor geralmente é o seu parceiro íntimo, que coabita o mesmo espaço ou não e pode acontecer em espaços públicos ou privados. Dentre outros motivos, a questão financeira é fator preponderante para manter a continuidade das agressões dentro do relacionamento, uma vez que a mulher pode se encontrar dependente economicamente do parceiro agressor nestes momentos e portanto, sem condições de estruturar e dar início a uma nova vida, principalmente se houver filhos desta relação. Ademais, a possibilidade de perda do patrimônio adquirido com o término da relação também tem peso na escolha de continuar dentro do relacionamento abusivo. Não há distinção quanto à orientação sexual e geografia onde ocorre o evento violento. A violência contra a mulher recebeu o status de crime hediondo com a lei 13104/2015, que tipifica o feminicídio com esta qualificação.
O feminicídio é “a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.”( SENADO FEDERAL, 2013).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, C. L. - Homeostase In: D´Acri, G.; Lima, P.; Orgler, S. - Dicionário de Gestalt-terapia: “ Gestaltês” - São Paulo: Editora Summus, 2007.
CASTAÑEDA, M. - O machismo invisível – São Paulo: A Girafa Editora, 2006.
PALHARES, MFS., and SCHWARTZ, GM. A violência. In: Não é só a torcida organizada: o que os torcedores organizados têm a dizer sobre a violência no futebol? [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 11-26.
PAIXÃO, Rosa M. B.F - Violência doméstica contra a mulher: Reflexões acerca do cuidado – Garanhus, PE. Edição do Kindle, 2018
SAFFIOTI, H.I.B; ALMEIDA, S.S. - Violência de gênero: poder e impotência – Rio de Janeiro: Revinter, 1995
SENADO FEDERAL, 2013 – Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher. Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres
SENADO FEDERAL, 2018 - Aprofundando o olhar sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres / pesquisa OMV/ DataSenado. – Brasília : Senado Federal, Observatório da Mulher Contra a Violência, 2018.
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