Vamos falar da série “Você”?
ALERTA DE POSSÍVEL SPOILER (Tento não contar o final, mas se ainda não chegou no final, guarda o texto para ler depois)
Mesmo compreendendo que é uma ficção não baseada em fatos reais, muitas de nós já se envolveu ou conhece mulheres que estiveram/estão em um relacionamento com um “Joe”. Não vamos levar ao “pé da letra” todas as ações, mas que muitas atitudes e características são possíveis de serem identificadas no nosso cotidiano. Por isso a importância de falarmos sobre essa série, sobre os “Joes” que encontramos em nossas vidas reais e sobre fugirmos do papel da Beck.
Não vamos tratar se é boa ou ruim, se tem falhas, se gostamos ou não da obra. Também não vamos fazer diagnósticos psicológicos dos/das personagens. A ideia é trazer algumas reflexões sobre relacionamento abusivo, machismo, culpabilização da vítima, violências contra as mulheres, baixa autoestima feminina, amor próprio fragilizado, o encontro do príncipe encantado (o herói, salvador), romantização dos abusos...
A série inicia com a Beck entrando na livraria em que Joe trabalha, então acompanhamos a narrativa sobre a perspectiva dele, que dá a entender que ela está “claramente” dando um tipo de “abertura”, desde estar sem sutiã e querer ser observada até o pagamento com cartão, que ela quer que ele saiba o seu nome.
Então Joe começa sua busca para conhecer mais a vida de Beck. É comum darmos aquele “rolê” nas redes sociais de pessoas que queremos conhecer mais, saber se tem um “crush” e até brincamos com o termo “Stalker”, mas o que ocorre na série é que Joe ao “stalkear” a Beck começa a manipular as coisas que vão ocorrendo na vida dela para que os caminhos deles se cruzem e que tudo pareça coincidência, procura causar uma boa impressão, surpreendê-la. Ele persegue todos os passos, conhece sua rotina, assiste ela transando com outros homens (e se masturba), investiga a vida das amigas, invade a casa e sua vida virtual, furta a calcinha e celular da Beck, enfim, ultrapassa todos os limites do considerado brincadeira ou mera curiosidade por outra pessoa.
Então ele ressurge na vida dela como o herói, que não somente salva ela dos trilhos do trem, mas da vida. O grande salvador, quem vai levar ela para um “bom caminho”, tirar ela da vida “desregrada” e “caótica”. Nesse momento ele é o príncipe encantado, o homem culto, gentil, cortês, educado, atencioso, sutil, amável,...
Muito CUIDADO, tudo a nossa volta tenta nos fazer acreditar que o único objetivo na vida de uma mulher é encontrar o príncipe encantado, que nossa vida só faz sentido quando estamos com um homem que nos salva, nos protege. Essa influência se dá desde os nossos brinquedos, contos de fadas, filmes, novelas, religiões, absolutamente tudo.
Nesse contexto, não é difícil cairmos em Relacionamentos Abusivos, tema este bastante em pauta nos últimos anos, apesar disso, conheço poucas mulheres que nunca passaram por um no decorrer da vida. Não se sinta culpada!
Nem sempre é fácil identificar o abusador ou abusadora (sim, não são somente os homens que são abusivos, na própria série a Beck tem uma amiga abusiva, e isso pode ocorrer mesmo sem conotação amorosa, pode ser alguém da família).
Os relacionamentos abusivos podem se caracterizar de diversas formas e níveis, você encontra facilmente na internet descrições do perfil do abusador (Confira se você deve ligar o sinal de alerta: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfg6LJCo-_BAW81HtQ2Ka6iTLQESPdhmxphzujToSeSmNazTg/viewform)
É importante lembrar que quando a pessoa está em um relacionamento abusivo, ela não precisa de julgamentos morais, ela precisa de ajuda.
Desde o início da série podemos identificar que aquela relação se encaixa no que é considerado relacionamento abusivo. O próprio “stalker” nesse nível extremo, invasivo, com monitoramento; quando ele quer saber absolutamente tudo que ela conversa com outras pessoas, os locais que ela vai, quem são suas companhias, utilizando as informações para a manipulação da vida dela; dizer/pensar/insinuar que ninguém mais vai amá-la como ele (na série ele não fala para a Beck diretamente, mas é o que considera como verdade); acreditar que somente ele a entende, sabe seu jeitinho, a aceita; que mesmo atitudes rudes, grosseiras, inadequadas, são por amor, para a salvar, consertar sua vida; o ciúme exacerbado (que não aparece para ela no início, mas sim para o final. Ele coloca como culpa das outras pessoas, dela, mas ele não se auto responsabiliza); toma o controle da vida dela; questionamentos sobre a sanidade mental da mulher; ele conquista as amigas para que elas fiquem do lado dele, entre outros traços durante toda produção.
A série ainda trata de forma secundária sobre a violência física que ocorre no apartamento ao lado de Joe, que condena aquele homem, se indigna com a violência tão grave quanto a que pratica.
Esses tipos de relações estão bem longe de ficarem somente na ficção, são muito mais comuns do que imaginamos. Essa lógica imposta socialmente, da felicidade feminina depender de um homem, faz com que as mulheres aceitem aqueles que lhes escolhem. A baixa autoestima e falta de amor próprio, bastante presente nas mulheres, leva muitas a se submeterem a essas situações, tanto que as relações anteriores da Beck eram no mínimo tóxicas.
Foi tarde demais, mas Beck teve um momento de tomada de consciência, ela retomou seus padrões e se aprofundou em autoconhecimento. Ela se questionou como chegou até lá, no Castelo do Barba Azul (conto que dá nome ao último episódio). Ela começa a escrever sua própria história, uma retrospectiva da vida dela, mas que não é diferente na vida de outras mulheres.
Ela diz: “você costumava se enrolar com contos de fadas como se fossem um cobertor”, “se o princípe encantado fosse real, se ele pudesse salvá-la, precisava ser salva da injustiça de tudo, quando ele chegaria?”, lembra do desdém de meninos lhe chamando de “vaca gorda”, o tio que passou a mão na sua bunda, a descrença e acusação do pai com o que aconteceu com o tio, que “percebeu que não tem a mágica que transforma uma fera em um príncipe”, “você se odiou e isso a desvalorizou ainda mais”, “agora no seu castelo, você entende que o príncipe encantado e o barba azul são o mesmo homem” e “se você não puder amá-la também?”.
Nas redes não foi difícil encontrar comentários como “nem meu marido quer me stalkear, só as lindas correm esse risco”, “eu não tenho tanta autoestima assim, pra pensar que existe a possibilidade de muitas pessoas me stalkearem”.
Que nosso autoconhecimento não tarde, que possamos reconhecer nossas histórias e poder definir caminhos diferentes. Que possamos retomar nossa autoestima e amor próprio, para então sermos protagonistas de nossas histórias.
Também é constante na vida das mulheres a desconfiança na palavra dela e a credibilidade na palavra do homem. Assistimos casos em que 300 mulheres foram colocadas em dúvida em relação a palavra de UM homem. Com o homem enquanto narrador não seria diferente. Muitas pessoas acreditaram na narrativa do abusador, se envolvem e defendem aquele homem “fofo”, que somente quer proteger a sua amada e transformam uma história de terror em uma história de amor e assim todo dia temos notícias de crimes “passionais”.
A personagem da Beck pode ter fomentado a antipatia do público por questões de misoginia e machismo. Ela se distancia do que a sociedade espera das mulheres, sabe “o bela, recatada e do lar”? Ela bebe, faz sexo com quem quer, se afasta do estereótipo de “boa moça”. Muitas pessoas nas redes tentam justificar as ações dele, falam que o que ele fez foi por amor, que ele queria o bem dela, que ela “mereceu”, que ele era um fofo e Beck não valorizou.
Pois é, comentários como esses tomaram conta das redes, a culpabilização da vítima é sempre presente. Não é atoa que os números de feminicídio são assustadores.
Não importa se você achou a Beck chata, mimada, safada, se pensou ser um absurdo a traição, ou o que for, ela é a vítima.
Não sejamos o “Você” na vida de um Joe e também não sejamos o Joe. Caso você tenha identificado características do Joe no seu relacionamento ou caso tenha se identificado com o Joe, procure ajuda de pessoas de confiança ou profissionais da psicologia.
Você ainda pode entrar em contato com 180 (Central de Atendimento à Mulher)
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