Um fato não pode ser negado: cada um de nós carrega em nossa história padrões familiares de ser e estar no mundo e percebê-lo. São ideias arraigadas que nos servem de parâmetro para todas as decisões a serem tomadas. Este constructo mental é edificado ao longo da vida com a sintetização de experiências de completude ou não. As que não são devidamente digeridas e assimiladas pelo indivíduo tornar-se-ão senhoras de seus destinos, a não ser que haja um esforço no sentido de se desenvolver a awareness, em outras palavras, a tomada de consciência com aquilo que é.
Este fenômeno é contínuo, uma vez que quando se coloca a serviço de voltar a atenção para aquilo que é ignorado, é promovida desse modo a integração do self e a construção de novas gestalten, ou seja, outras formas de perceber a situação na qual está inserido. (YOUNTEF, 1998). Corrobora neste sentido Zinker (2001), ao afirmar o dinamismo constante da consciência: o indivíduo organiza os estimulos, alcança um foco nítido, cresce em contato e retrai-se, examinando o conjunto de estímulos a seguir.
Este processo tem como objetivo maior “fomentar e melhorar nossa capacidade de aprofundar-nos e dar-nos conta do que ocorre dentro e fora de nós” (MARTÍN, 2011). É desenvolver a capacidade de ser o protagonista da própria história chamado para si toda a responsabilidade para o que lhe chega como compreensão da experiência vivida.
No entanto, muitas resistências surgem no transcorrer deste trabalho, pois conhecer a si próprio e consequentemente crescer e maturar em possibilidades como ser humano pode ser uma vivência extremamente perturbadora. A(o) cliente/ casal é quem vai descobrir por si mesma(o/os), com o auxílio do terapeuta o caminho que se desdobra à sua frente, provavelmente desconhecido; qualquer movimento numa mínima área que seja vai influenciar no seu todo, e é necessário um suporte dado pelo profissional para que este passo seja dado.
As resistências em termos de bom funcionamento do sistema íntimo que se mostram em ambiente terapêutico estão intimamente relacionadas à interrupção de contato. Pormenorizando, antes de o indivíduo fazer parte de um sistema íntimo, é um só. E em sua experiência individual foi desenvolvendo em sua linha da vida um certo grau de capacidade do contato que tem com o mundo que o rodeia, a nível quantitativo e qualitativo, estando disposto a ter os seus limites testados a partir do momento em que se almeja algo, a empreender energia para um determinado fim. Tudo isto com base em ideias e valores transmitidos transgeracionalmente (assim como aqueles adquiridos conforme as experiências advindas), memórias, crenças e vivências com outras pessoas (MARTÍN, 2011).
Os limites experienciados e/ou construídos pelo indivíduo são de diversas ordens. Os relacionados aos ambientes podem ser mais ou menos abertos, permissivos ou estimulantes. Já os do corpo têm a ver com bloqueios a nível corporal, oriundos de consolidações no organismo a partir de experiências negativas. Os limites em função dos valores geralmente são rígidos e acabam por cegar as fronteiras de contato, uma vez que outras possibilidades em intercâmbios que não as nossas não são válidas. Os ligados à familiaridade falam de quão empobrecidas as nossas experiências justamente pelo fato de acomodar-se a uma mesma experiência ou crença, ao invés de procurar entrar em contato com outras alternativas às suas. Os de expressividade têm a ver com papéis desempenhados no mundo, além de desempenhar espontaneamente ou não sua própria vontade. E por fim, os limites de exposição, que falam muito do modo como o indivíduo internalizou ao longo da vida experiências relacionadas com a sua própria imagem (MARTÍN, 2011). Impossível não pensar na influência do machismo determinando o modo de o indivíduo desenvolver o contato com as pessoas e o mundo que o rodeia, através de seus estereótipos de relacionar-se e colocar-se.
Cada parte componente do sistema íntimo traz consigo uma combinação aleatória destes limites em graus diferentes, e o resultado do encontro destas duas combinações (a saber, da história pessoal mais os arranjos presentes nos sistemas) vai ter peso decisivo na qualidade da relação.
O contato em âmbito conjugal celebra a diferença e faz assimilar uma nova criação a partir desta união, que pode nutrir ou prejudicar um ao outro. É importante destacar que muitos casais normalmente se formam com pouca destreza no quesito relacionar-se, principalmente em se tratando da primeira experiência. Eles vêm com a herança da bagagem emocional e relacional das gerações anteriores, e não somente a imediatamente superior. Esta condição pode abarcar também novos sistemas formados com experiências de relacionamentos passados (ZINKER, 2001). Ou seja, ter várias vivências de relacionamento não indica sucesso ou habilidade em termos de viver maritalmente.
Martin Buber é grande inspiração no que diz respeito a compreender as relações, tanto entre si como com o mundo que está-aí. Nelas, os indivíduos estão sendo-uns-com-os-outros, confirmando e desenvolvendo a sua humanidade. O significado das relações inter-humanas não está nem em um dos parceiros ou nos dois juntos, mas no diálogo que estas partes estabelecem entre si, no que é vivenciado por ambos. É a denominada palavra-princípio “Eu-Tu”.Já a palavra-princípio “Eu-Isso” estabelece a compreensão do contato do homem com um determinado objeto, de uma coisa, do mundo. Ambas as expressões denotam a revelação de que o homem é um ser ontológico, dialogal, portanto movido pela reciprocidade deste encontro. (MENDONÇA; COSTA, 2007).
referências:
MARTÍN, A. - Manual prático de psicoterapia gestalt – Petrópolis; Editora Vozes, 2011.
MENDONÇA, Marisete M.; COSTA, Virgínia E.S. M. - Eu-tu e Eu-isso – In: Dicionário de Gestalt-terapia: “ Gestaltês” - D´Acri, G; Lima, Patricia; Orgler, Sheila orgs. - São Paulo: Summus, 2007.
YOUTEF, Gary M. - Processo, diálogo e awareness: ensaios em gestalt-terapia - São Paulo: Summus, 1998.
ZINKER, J.C. - A busca da elegância em psicoterapia: uma abordagem gestáltica com casais, famílias e sistemas íntimos – São Paulo, editora Summus,2001.
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